As verdades que nunca te dizem sobre fazer um doutoramento

Sempre que digo a alguém que estou a fazer o doutoramento em microbiologia a reação mais comum é: Deves ser mesmo inteligente!

Quase sempre tenho que afogar o riso irónico que teima em subir-me pela garganta. Não podiam estar mais longe da verdade.

Inteligente é o que menos tenho sentido ao longo destes anos de avanços e retrocessos crus e cheios de desafios. Atrevo-me a dizer que me sinto estúpida várias vezes por semana, às vezes várias vezes por dia.

E se achas que sou a única não podes perder o brilhante artigo de Martin Schwartz: “The importance of stupidity in scientific research“.

Não há nada mais delirante para um típico estudante calejado do que lidar com a loucura ilógica de fazer um doutoramento. Todas as qualidades que adquirimos e optimizamos enquanto estudantes revelam-se completamente inúteis quando confrontados com as frustrações de fazer investigação.

Às vezes as experiências funcionam e não conseguimos explicar porquê. Às vezes deixamos de conseguir reproduzir resultados. Às vezes descobrimos que protocolos publicados na “Nature” são uma fraude e nos fazem perder tempo precioso. Às vezes nada funciona durante muito tempo e sentimos que vamos enlouquecer.

Às vezes as coisas começam a funcionar de um momento para o outro e os nossos orientadores acham que andamos a brincar durante tempo demais e que só agora é que decidimos começar a trabalhar a sério.

Mas deixa-me contar-te como começou a minha história.

Quando andava a candidatar-me a posições de doutoramento fiz duas grandes entrevistas no estrangeiro antes de ser aceite para uma bolsa de doutoramento mista entre Portugal e Suíça. Em ambas as entrevistas carregava inchadas expectativas de ser aceite em laboratórios europeus onde se faz ciência ao mais alto nível.

A primeira rejeição não doeu muito. Eu sabia que não tinha dado o melhor de mim e, para proteger o meu frágil ego, arranjei espampanantes e embaraçosas desculpas e regressei à minha rotina, inalterada.

A segunda rejeição não deixou espaço para me esconder atrás de desculpas.

Eu dei o meu melhor para conseguir aquela posição. Enquanto os meus colegas abraçavam exuberantes vidas sociais, eu punha-me a estudar para essa entrevista. E ainda hoje guardo as páginas rabiscadas da minha intensa preparação. Genética. Bioinformática. Biologia molecular. Cancro. Resistência a antibióticos. Cooperação entre bactérias. Perspectivas de carreira. Enfim, tudo o que imaginei que os meus entrevistadores pudessem perguntar-me para avaliar a minha capacidade e competência.

Dormi muito pouco nessa altura, mas não deixei de cuidar de mim. Sentia-me electrizada por essa oportunidade. Como se, do dia para a noite, tivesse descoberto uma fonte inesgotável de energia.

Atirei-me a essa oportunidade de cabeça e de braços abertos. Estudei e pesquisei como nunca antes. E, o que mais me surpreendeu foi ter conseguido pôr de parte a minha timidez e fazer coisas que antes me deixavam extremamente desconfortável, como perseguir professores e alunos e fazer perguntas audazes.

Quando a rejeição finalmente veio foi como chocar a alta velocidade contra uma parede de betão. Eu tinha subido ao cume de uma enorme montanha e sido recompensada com o precipício. Chorei durante dias. A minha dor estava ali, crua e exposta para que todos pudessem ver. Desta vez não podia mentir a mim própria. Eu tinha dado o meu melhor. E não tinha sido suficiente.

Voltei ao meu país a sentir-me derrotada. E nunca mais seria capaz de encarar a minha vida da mesma forma. Não poderia voltar a ser a mesma pessoa mesmo que tentasse. Não havia forma de voltar a colar a minha esperança despedaçada.

Eu sempre tinha tido boas notas. Era uma aluna calejada no sistema de ensino. Ensinaram-me que a inteligência e capacidade eram inatas e imutáveis. E eu escolhi acreditar nisso e escolhi tranquilizar as minhas dúvidas com a ilusão das minhas classificações. Uma simples viagem e uma série de entrevistas num dos melhores laboratórios europeus foram suficientes para quebrar o feitiço.

Demorei alguns meses a digerir essa experiência. E talvez tenha demorado anos até perceber como é que tudo isso me definiu e me mudou. Mas ainda me lembro da promessa que fiz a mim própria quando as minhas lágrimas secaram. A promessa de que iria levar o meu doutoramento em Portugal até ao fim, que ia dar o melhor de mim independentemente das circunstâncias e dos recursos, e que não ia desistir mesmo quando as coisas ficassem duras.

O mais interessante é que dois anos depois de começar o doutoramento choquei contra outra parede de betão.

Uma descoberta acidental (?) invalidou quase 2 anos de muito suor e trabalho. E o pior de tudo é que não havia maneira de recuperar o tempo perdido. Eu tinha que continuar em frente com aquilo que tinha. Com o tempo e os recursos que estavam ao meu dispor. Pela primeira vez tive que forçar-me a acreditar que era possível forjar a minha sorte.

Penso que numa história típica era aqui que eu te dizia que acabei o doutoramento a sentir-me vitoriosa. A publicar um excessivo número de artigos e a escrever uma tese louvada por muitos. Mas comecei a perceber o quão aborrecidos são esses finais.

Agora, a poucas semanas de entregar a minha tese, toda esta história começou a fazer sentido. Os aplausos e a validação perderam muita da sua importância. O que importa agora é olhar para trás e contemplar tudo o que aprendi nesta longa viagem. Aprendi a lidar com a crítica dos meus colegas e orientadores.

Aprendi a reconhecer as minhas limitações sem ter que as aceitar como verdades escritas em pedra. Aprendi a aprender, mas também aprendi que, às vezes, é preciso ignorar conselhos de pessoas sensatas e experientes e simplesmente arriscar.

As melhores coisa que me aconteceram foram essas rejeições e descobertas “acidentais”.

Que tipo de pessoa seria agora se tivesse entrado nesse laboratório famoso e nesse sistema privilegiado? Será que teria redescoberto a excitação de me sentir “perdida” e energizada diante de um obstáculo? Será que teria aprendido que o processo é o mais importante que os resultados? Será que teria aprendido a arriscar?

Será que seria a pessoa que sou hoje? Imperfeita e cheia de vontade de continuar a aprender?

Honestamente? Eu acho que não.

O doutoramento não é para fracos. Nem inteligentes. Nem para alunos cheios de boas notas. O doutoramento despe-te do teu ego inflamado por um sistema que valoriza mais as classificações do que o potencial. Que cria alunos que perseguem o fácil e se sentem paralisados pelo medo de falhar. Que valoriza mais os resultados a curto prazo do que a força de vontade de cada um.

Enquanto criança cheia de vontade de crescer ainda me lembro de uma professora me perguntar: “Quais são as disciplinas que mais gostas? E quais são aquelas em que sentes mais dificuldades?” A minha resposta foi igual para ambas as perguntas: Português e Matemática.

E ainda me lembro da reacção incrédula dessa professora: “Ana, não podes gostar das coisas em que sentes mais dificuldade. Não faz sentido nenhum!”

Bem, professora, muitos anos depois queria finalmente dar-lhe a resposta que merece: Acredite que sim!


Créditos da imagem: Victor Freitas on Unsplash

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